Quem sou eu? Sou aquela que tu não queres encontrar, mas cujo encontro é inevitável. Sou uma assassina, que trabalha diariamente varrendo do mundo almas, sejam elas boas ou não! E não que isso me agrade, simplesmente faço, porque é minha obrigação.

terça-feira, 9 de março de 2010

Mais vida, mais morte

Viver é uma caminhada constante para a morte. Ou seja, quanto mais vivemos mais próximos da morte estamos. Uma constatação cruel, não fosse essa maldita eternidade, que segue linearmente, nos deixando cada vez mais dúvidas, do que repostas para nossas perguntas.

Vejamos, qual seria o propósito de morrer, se continuamos a peregrinar com nossas almas por aí. Por que simplesmente não ficarmos por aí, decrépitos, mas sem ter de fazer esta tal passagem, que a mim não levou a lugar algum. Pior ainda, tenho que assistir diariamente pessoas indo para algum lugar? Par onde? “Isto não lhe compete.” É a única coisa que me dizem.

Meu trabalho é pior que de um metalúrgico, que passa a vida apertando a porca do parafuso da suspensão traseira esquerda. Ao mesmo ele sabe qual o produto saíra no final da linha de montagem. Já eu continuo na obscuridade de um superior que jamais se revela. Nem mesmo para mim que faz este trabalho tão essencial.

Por exemplo. O caminho de Tiago Pedroso está preparado. Tudo pronto, ele cruzará sobre a faixa branca, um motorista desatento não o verá, e ele será atropelado. Fatalmente. Ninguém notará meu trabalho, afinal, este recurso é muito recorrente entre nós, e ninguém mais dá importância para atropelamentos.

Mas era isso que queria falar, e sim, que pronto, fiz minha parte, conduzi sua alma de um estado vivo da matéria, para energético, onde resta apenas sua alma, que por vezes inclusive teima em desgrudar-se da matéria. Dizem até que isto ocorreu comigo. Mas e depois, quando não ficamos vagando como meu caso que não surgiu nenhum guia para carregar-me, para onde aquelas almas de cores múltiplas, que dizem variam por causa do humor, ou pelo destino de quem morreu, para onde vão? Tudo continua mistério.

Portanto meus amigos, se vocês pensam que a vida é chata, não se decepcionem, deste lado as coisas não melhoram muito, e pelo menos eu continuo na absoluta ignorância. Pelo menos me divirto quando tenho que matar, um bandido qualquer, embora estes sejam mais raros de morrer, por incrível que pareça.

sexta-feira, 5 de março de 2010

O livro dos mortos

Não sou a única que vive de matanças. Precisa-se de muitas como eu para cumprir as metas estabelecidas pelo chefe. Eu não o conheço, apenas ouvi falar. Mas é dele, do último na pirâmide hierárquica que decide quem deve ser morto, ou como algumas de nós preferem dizer, ser transportado. Durante as sete semanas de treinamento a única coisa repetida sobre o chefe é que apenas a força da mentalização dele fazia surgir os nomes em nossos livros negros.

O livro é de uma capa dura de um couro já extinto. Algumas citam dragões, outras de mamute, mas ao certo, dá pra afirmar apenas que o material é raro. Sobre o livro também nos é informado que ele contém exatamente o número de páginas necessárias para o cumprimento da missão. O meu não é dos menores, mas já vi alguns, no mínimo cinco vezes maior que ele. Meu livro esta bem no meio, o que significa que ainda terei de providenciar várias mortes, mesmo que eu já esteja trabalhando contra minha vontade.

Simplesmente cansei. Por isso tenho compartilhado meus anseios. A sempre algo para fazer, e quase sempre com aquele sentimento de monotonia, onde quando mais queremos chegar o fim da jornada mais ela se parece distante. Talvez eu não estivesse preparada, mas o fato é que tenho considerado totalmente irrelevante continuar meu trabalho. O que haverá depois disso? Sinceramente esperava que a morte me libertasse dos problemas terrenos, no entanto aqui estou eu, mais fadigada que antes.

Tudo se torna ainda mais chato neste cenário. Que asilo horroroso. Paredes mofadas, camas rangendo, gemidos, luz lúgubres, um ambiente totalmente insalubre, embora isto não seja problema pra mim. Talvez seja para os outros internos. Já este velho também não lhe importa mais as condições de higiene, embora sua teimosia em morrer agarrado ao último fio de vida que lhe corre nas veias. Continuarei sufocando seu peito lentamente, e antes da meia noite ele terá descoberto seu caminho.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Paradoxo

Morrer é um paradoxo. Antes de sabermos que realmente chegou nossa hora, a morte nos parece tão distante, no entanto quando ela nos visita fica tão claro quanto é fácil morrer. Eu já morri. Obviamente vocês já sabem disso. Não lembro como foi. Apenas uma rodovia escura, a vegetação densa contornando suas curvas, e o som do motor aquecido, de uma provável longa viagem. Monótono é o único sentimento que consigo relembrar dos instantes finais, antes que a luz intensa invadisse minhas pupilas, e levasse a maior parte de minha memória.

Para trabalhar em meu serviço é necessário desgrudar-se de qualquer lembrança. Nenhuma ligação com o mundo da matéria onde os códigos de energia se transformam em carne e osso. Talvez seja pela complexidade do que temos que fazer, pois mesmo que se tente simplificá-lo será sempre uma tarefa para poucas.

Talvez por isso não haja homens entre nós. Eles são suscetíveis e emotivos. Já nós conhecemos a larga diferença entre a obrigação e o prazer, entre a repulsa e a necessidade de cumprir sua missão. Ouvi de uma colega, cujo castigo é longo, que outrora homens exerceram a função, mas isso faz tempo... Era a idade média ainda.

Estou muito dispersa hoje. É que não gosto de matar crianças. Um jovem de doze anos deveria ser proibido de morrer. Quantos caminhos ele poderia seguir, quantas coisas boas ele poderia construir... Mas como não sou eu quem faz as regras tenho de providenciar sua partida. Será um atropelamento, e queira que sua mãe não esteja próxima quando, pois não há lágrima mais ácida que a de uma mãe ao ver seu filho partir.

Em dias como o de hoje sempre questiono quando esta minha missão chegará ao fim? Quando meu castigo será extinto, para que possa finalmente seguir minha jornada, pois espero com toda fé que Ludmilla não esteja errada quando diz que isto aqui é apenas uma função intermediária, e que ainda há para onde ir.

Quando ainda estava viva alguns castigos de infância pareciam eternos. Mas só hoje sei o significado de eternidade. É a imagem daquela mão aos prantos segurando o corpo de seu filho no colo.

terça-feira, 2 de março de 2010

Singularidade

É bem singular como descubro quem será minha vítima. Deste outro lado vê-se porque a humanidade é avessa a tecnologia, e ao invés de e-reader’s preferem derrubar uma centena de árvores para imprimir seus livros. Deste outro lado funciona da mesma forma. Nada de notebooks, ou um kindle. Resultado, eu tenho que carregar este livro maior que a bíblia, e aguardar, que magicamente nele surja os nomes dos que estão para morrer.

Quando os recebi, as páginas estavam em branco, mas a cada dia foi surgindo, nomes, e mais nomes, até se tornar um misto de dicionário e obituário. E haja criatividade em inventar novas mortes. Na verdade não sou muito criativa. Não sei se sempre fui assim, mas neste serviço prefiro sempre o óbvio.

Como no próximo nome que surgiu. Alfredo Nascimento. Empresário, político, e com uma coleção de inimigos. Não vou preocupar-me muito com sua partida, pois não será necessário nada mais que oportunizar a um de seus inimigos o último encontro. O derradeiro. Será na saída do restaurante, e me basta sussurrar na mente de Clodoveu Garcia o que ele já intenciona, mas até hoje lhe faltou coragem para fazer.

Mas antes que pensem que possuo assim tanto poder, é preciso dizer que somente se influencia quem está disposto a ser influenciado. Todas as pessoas, vivas ou não possuem o direito a liberdade de escolha. Somos quem somos, e o que somos, e tudo isto é sempre resultado de nossas escolhas. Eu mesma poderia estar por aí vagando sem destino. Assombrando uma casa ou outra, até finalmente ser permitida minha passagem para o destino final. Foi escolha minha. Talvez uma escolha precipitada, não nego. Mas foi decisão minha sair matando indiscriminadamente. Eu tinha escolhas...

Então me resta aceitar o que faço. Tem lá também seus objetivos. Imagine um mundo sem rotatividade. Sem almas discordantes, ou renovantes. Talvez nada do que exista hoje, aí estivesse. Tenho que ver um objetivo em tudo que é feito. Por isso a bala ardente atravessando o crânio de Alfredo Nascimento não me choca mais.

Quem sou eu?

Quem sou eu? Talvez não seja esta a pergunta mais pertinente. Gostaria de saber quem exatamente eu já fui, pois o início desta história começa justamente quando outra acabou. Não me lembro quanto tempo passou de lá pra cá, nem sei se isto importa, o fato é que estou indo para a residência dos Andrade, matar um por um, inclusive o menino de doze anos.

Não há nada que eu possa fazer. Confesso: essa situação sequer me agrada, mas não há alternativas, alguém tem de fazê-lo, e não que eu tenha desejado, mas nos últimos sete anos, dois meses, e onze dias, é a única coisa que faço. A uma média de cinco vidas tiradas por dia, lá se foram mais de duas mil e seiscentas vítimas. Parece muito? Acredite, não é. Há companheiras com uma média bem mais elevada. E pasmem, elas se divertem com isto. Competem umas com as outras.

Sinto em meu íntimo isso não deveria ser minha missão. O vazio onde um dia residiu um estômago continua fraco para coisas deste tipo. Meu nível de sadismo nunca foi elevado, e por isso fico chocada, a cada dia forçado de serviço. Uma escrava a serviço de quem eu já mais vi, que me é apenas um personagem oculto, cuja presença sempre tem de ser lembrada pelas supervisoras.

A casa dos Andrade é bonita. Um sobrado, com detalhes em tijolos à vista, e o restante pintados num tom de verde pêssego. É pena ver tão bela construção, que talvez tenha sido tão dificultosa para ser erguida sendo consumida em chamas ardentes. Aquele pequeno vazamento de gás ajudou-me. Do contrário teria de elaborar um planejamento mais detalhado. E às vezes doze horas são insuficientes.

Fico sabendo sempre um dia antes. Por isso tenho que dividir o dia em duas partes. A em que sou informada quem será a vítima, bem como todo seu histórico. É nesta etapa que planejo tudo. O fogo na casa dos Andrade não deixou nada em pé. Tudo virou cinzas, inclusive cada um daqueles que estavam destinados a morrer. Agora é só aguardar os próximos nomes. Meu trabalho não cessa nunca.